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sábado, 19 de junho de 2010

A China sacode o mundo - James Kynge - Eleito o melhor livro de negócios pelo Financial Times (2006) - Livro delicioso de ler!



A China sacode o mundo

A china Sacode o mundo
James kynge
Editora Globo
ISBN 9788525043382 - Categoria ECONOMIA

As notícias sobre o avanço chinês não param de surpreender. Diariamente a imprensa internacional traz novidades sobre o “dragão” que dobra o tamanho de sua economia a cada seis ou sete anos. E que, com imenso apetite, compra insumos, pressiona preços dos produtos básicos, invade mercados de países industrializados e em desenvolvimento. Como entender uma nação que em duas décadas saiu da periferia para o centro das decisões globais? James Kynge, autor de A China Sacode o Mundo, que a Editora Globo acaba de lançar, é uma das pessoas mais qualificadas do planeta para dar essa resposta. Ele conheceu como estudante um país ainda fechado às idéias do ocidente e retardatário na corrida pelo progresso em 1982. Desde então, trabalhou 19 anos como jornalista na Ásia e tem a experiência de mais de uma década fazendo reportagens por todo o imenso e desigual território chinês. Ninguém acompanhou mais de perto as transformações econômicas, sociais e culturais que hoje colocam o país no centro das decisões mundiais.


Números da China:








Abaixo uma pequena degustação do livro:

O mar de guarda-chuvas de Xangai A pressão populacional molda a vida chinesa. Ela determina que a máquina econômica não pode parar, sob o risco de o governo perder o "mandato dos céus" que assegura sua legitimidade e permanência
O trem ficou parado durante muito tempo na estação de Chongqing e, quando finalmente partiu, parecia engatinhar, de modo que o movimento era quase imperceptível. Eu me sentei, como tantas vezes antes, olhando pela janela e pensando no tamanho e na complexidade do país que desfilava do lado de fora. O cenário natural muda, mas em qualquer direção, durante a viagem, uma coisa é constante. Gente. Sua presença e seu peso estão por toda parte. Mesmo nos espaços entre as fábricas, cidades e aldeias, pode-se ver gente indo de um lado para outro em bicicletas, tratores, carroças, ônibus, carros e trens. A pressão da população é tal que as menores porções de terra cultivável no alto de platibandas, nas montanhas e à margem das estradas são usadas para plantio. Nessa viagem, como em muitas outras ao longo dos anos, fiquei pensando como a presença penetrante do povo na China deu forma à experiência do país e moldou a consciência nacional. Eu me lembrei de uma moça que conheci cerca de 18 anos antes, em Tóquio. Filha de um funcionário de alto escalão em Pequim, ela fora mandada ao Japão para estudar o idioma. Conhecemo-nos numa virada de estudo, numa escola noturna. Uma noite, depois das aulas, nossa conversa se voltou para o Grande Passo à Frente, os três anos de caos inspirados por Mao Tsé-Tung que resultaram numa fome da qual se calcula que pelo menos 30 milhões de pessoas tenham morrido. "Foi bom que eles morreram", disse ela. "Há gente demais na China."
A China não vive apenas de explorar mão-de-obra barata. Suas universidades formam mais gente que os EUA
Do ponto de vista econômico, a população é o paradoxo mais básico da China. Ela é ao mesmo tempo sua maior força e sua fragilidade mais grave. Um estoque humano sem paralelos permite que o país assuma as características de diversas nações ao mesmo tempo. Seu imenso manancial de mão-de-obra industrial de baixo custo faz inveja a todo o mundo desenvolvido, e, no entanto, a China não é apenas uma gigantesca instituição exploradora de mão-de-obra. Universidades no continente produzem mais gente formada a cada ano que os Estados Unidos. Embora apenas uma fração da população possa atualmente ser chamada de consumidora, a promessa de um vasto mercado interno fica mais real à medida que a classe média (estimada entre 100 milhões e 150 milhões de pessoas em 2004) está em expansão. De qualquer modo, a história recente provou que é a perspectiva de um mercado maior, mais que sua existência, a chave para a atração de investidores estrangeiros. Entretanto, essa força fica um tanto prejudicada pela opressão dos números.




Produção de chá em Anxi A industrialização chinesa se alimenta de mão-de-obra barata, tecnologia de ponta ocidental, crédito abundante e, não menos importante, do enorme mercado criado pelo maior e mais rápido processo de urbanização da história
As crianças de Mao
Embora a China esteja atualmente na iminência de ultrapassar o Reino Unido como quarta maior economia do mundo, sua renda per capita está ainda entre as das nações mais pobres do mundo, com pouco mais de US$ 1 mil por ano. Mesmo que o produto interno bruto um dia se torne tão grande quanto o dos Estados Unidos, a matemática simples determina que seu povo, nesse momento, será em média apenas um sexto tão rico quanto os norte-americanos. Em taxas relativas atuais de crescimento, o tamanho da economia chinesa irá se equiparar à dos Estados Unidos poucos anos antes de 2040. Mas nessa época, também, as crianças da explosão populacional de Mao, nos anos 1960, 1970 e início de 1980, estarão se aposentando.
Na verdade, em 2040, cerca de um terço da população de então ou aproximadamente 400 milhões de pessoas estará com idade acima dos 60 anos. Pode ser que a China fique velha antes de ficar rica. Entretanto, o obstáculo mais importante causado pela população é uma variante do desafio que os imperadores, desde tempos imemoriais, tiveram de enfrentar (e o fracasso de Mao foi notável). No passado, o equilíbrio pelo qual todas as dinastias lutavam era entre a quantidade de alimentos e a quantidade de bocas, mas os 25 anos de desenvolvimento podem ter banido esse conceito para sempre. O equilíbrio crucial hoje em dia é entre pessoas e empregos, e até agora se mostrou esquivo. Mesmo quando a economia cresce 9% ou 10%, ela fracassa por uma margem de vários milhões na criação dos 24 milhões de empregos necessários todos os anos. Desse modo, enquanto o resto do mundo pensa que a China está gozando de uma espantosa prosperidade, os funcionários que trabalham por trás dos altos muros de seu recinto fechado em Pequim se sentem presos em uma infindável crise de empregos.
Isso cria uma pressão inflexível por crescimento que influencia qualquer plano e estratégia econômicos e pode deixar Pequim com pouco espaço para acordos nas deliberações com parceiros comerciais. Dificilmente uma semana se passa sem algum incidente trabalhista ou social em algum lugar do país, e algumas dessas explosões são sérias. Se a taxa de crescimento caísse dramaticamente, essas convulsões certamente iriam se intensificar. Como gostam de dizer os economistas em Pequim, a China é como um elefante numa bicicleta. Se for mais devagar, cai, e aí, a Terra poderá tremer.
A pressão da população se combina com outros aspectos da vida no país para criar a característica mais destacada da China corporativa. O principal deles é uma tendência, entre as companhias, de continuar produzindo, ou até de expandir a produção, muito depois de já ter desaparecido qualquer margem de lucro discernível. Esse comportamento, em parte, pertence à atração hipnotizadora de tentar ganhar uma fatia maior do mercado de "1 bilhão de consumidores", mas isso não é tão simples assim. A questão é de importância fundamental, no entanto, porque ajuda a demonstrar por que a maior parte dos produtos manufaturados na China sofre de excesso crônico e, por extensão, por que tantos deles são extraordinariamente baratos. Qualquer fabricante escolhido aleatoriamente poderá esclarecer as causas por trás desses diversos fenômenos. Antes de deixar Chongqing, entrei outra vez em contato com a Lifan Motorcycle, uma companhia que eu andava acompanhando havia alguns anos. Quanto mais sabia a respeito dela, e sobre as proezas de seu notável fundador, Yin Mingshan, mais passava a encará-la como um estudo de caso, sobre como os fabricantes chineses muitas vezes conseguem obter preços um terço, ou 40%, ou até mais baixos que seus concorrentes no exterior.


Bicicletas na cidade de Jianin O meio de locomoção mais popular da China vem sendo substituído rapidamente por motocicletas e automóveis, cujos preços despencaram graças à soma de tecnologia ocidental, mão-de-obra barata e pirataria
De preso a empresário
A carreira de Yin, como a de muitos empresários que se fizeram sozinhos, passou longe da trajetória ortodoxa. Foi preso em 1961 por atividades "contra-revolucionárias", um dos tipos de crime de definição mais vaga, e no entanto dos mais sérios. Sua atividade empresarial começou quando ele saiu da prisão. "Era como se a coisa que eu mais temesse estivesse atrás de mim. Minha paciência tinha sido treinada, e meu julgamento estava claro", disse Yin na primeira vez em que o vi.
Não foi fácil, no entanto, para um ex-presidiário com mais de 40 anos e sem experiência de trabalho encontrar emprego. Mas, do mesmo modo que para muitos empresários dos anos 80, as poucas perspectivas de emprego de Yin acabaram sendo uma bênção. Ele teve permissão para começar um negócio particular vendendo livros e teve bom lucro. No final da década, sua fortuna pessoal era muito maior que a daqueles que tinham permanecido na folha de pagamento do Estado. Além disso, conseguia perceber para que lado o vento soprava. Ele tinha notado que as pessoas adoravam bicicletas, deleitando-se com as menores diferenças: um selim coberto de xadrez, um tipo novo de campainha ou uma bola de pêlo de coelho na extremidade de um chaveiro. Percebeu que a sociedade inteira se debatia em meio às amarras do igualitarismo. As bicicletas motorizadas seriam a grande coisa a seguir, exatamente como nos dias iniciais da decolada industrial japonesa. Em 1992, ele vendeu seu depó­sito de livros e levantou US$ 15 mil para estabelecer a Chongqing Hongda Motorcycle Fitting Research Institute, uma empresa de oito pessoas, incluindo sua mulher e filho.
A palavra "Hongda" no nome dessa empresa não era um erro. Era uma declaração de intenções. Yin queria construir uma empresa de qualidade mundial. Buscava imitar o sucesso das grandes empresas japonesas Honda e Yamaha e expulsá-las do mercado chinês. Uma vez feito isso, ele as ultrapassaria no mundo exterior. Mas de algum modo teria de sair de sua oficina suja de graxa, no subúrbio de uma cidade secundária em ruínas, até conseguir desafiar as motocicletas de marcas reconhecidas mundialmente. O tempo era curto.
A palavra "Hongda" do nome da empresa de motocicletas não era um erro. Era uma declaração de intenções
Tanto a Honda como a Yamaha estavam vendendo bem na China, construindo sua reputação e seu status. Yin adotou o que lhe pareceu ser o único caminho viável: copiou projetos e roubou tecnologia. Os motores Yamaha tinham então se tornado disponíveis localmente, depois de um acordo assinado entre a companhia japonesa e a Jianshe Industrial, uma velha firma de armamentos que apenas 40 anos antes fabricava metralhadoras e canhões para resistir ao cerco na guerra contra o Japão. Como parte do acordo de licenciamento, foram estabelecidas oficinas locais de manutenção e reparos com acesso à gama inteira de peças de reposição da Yamaha e o know-how para consertar os defeitos. Yin foi a essas oficinas, comprou as peças e conseguiu dicas dos mecânicos que ali trabalhavam. Dentro de alguns meses de engenharia reversa, tinha construído uma réplica de motor Yamaha.
"Para começar, copiamos inteiramente as coisas dos outros", disse ele. "Em 1994, fabricamos nosso próprio motor pela primeira vez. Não era uma cópia. Em 1995, fabricamos três de nossos motores. Os japoneses jamais imaginaram que os fabricantes tradicionais chineses fossem desenvolver-se tão rapidamente. Eles ficavam bem distantes e eram condescendentes, como os norte-americanos antes de Pearl Harbour."

Mas, na realidade, havia pouco que os japoneses pudessem fazer. Restrições governamentais significavam que a Yamaha, a Mitsubishi e a Honda não tinham a liberdade de estabelecer suas fábricas onde quisessem; deviam formar joint ventures com parceiros escolhidos para eles pelo governo. Foi-lhes dito também que teriam de transferir tecnologia para seus parceiros como taxa de ingresso num vasto mercado potencial. Além disso, era indefinido o controle que teriam sobre o marketing e uma rede de fornecedores. Mas a tentação de 1 bilhão de chineses trocando suas bicicletas por motocicletas parecia sobrepujar as dúvidas. A Yamaha entrou direto, criando uma joint venture meio a meio com a Jianshe, uma típica criação do planejamento socialista que tinha 18 mil trabalhadores na folha de pagamento e outros 35 mil com pensões ou de algum modo dependentes da fábrica. Todos os dependentes deviam ser pagos com a renda corrente, porque o conceito de fundos de pensão não existia na China no início dos anos 90. A tomada de decisão na fábrica era difusa e obscura, e qualquer iniciativa se tornava custosa. Entretanto, esses problemas, embora espinhosos, empalideciam junto à questão da propriedade intelectual.

A fábrica deixava vazar seus segredos industriais mais do que peneira. Fornecedores de componentes, que supostamente tinham de ser discretos e leais, na verdade se envolveram num incrível comércio, vendendo peças a falsificadores pelas portas dos fundos. A Yamaha achou difícil saber como lidar com a seriedade do problema até que lançou, em 1955, seu modelo principal, a Jinbao de 100 cc e motor de quatro tempos, depois de anos de preparação. Aí o horror revelou-se por inteiro. Poucos meses depois do lançamento, réplicas exatas eram fabricadas em 36 fábricas no país. O pior de tudo era que, embora as cópias fossem quase idênticas, eram vendidas por cerca de 6 mil renminbi cada uma, contra os 18 mil renminbi que a Janshe-Yamaha cobrava pela Jinbao.
Em meados de 90, a pirataria se tornara um fenômeno comum demais. Uma vez infectada a indústria, a doença espalhou-se como um vírus pela cadeia de valores e pulou de empresa a empresa. Nos primeiros anos do século 21 ela era endêmica, não mais uma desvantagem periférica à comercialização, mas um fato que quase todas as companhias, em praticamente todos os setores, eram obrigadas a considerar ou enfrentar. Diversas estimativas calcularam que empresas norte-americanas, japonesas e européias podiam estar perdendo mais de US$ 60 bilhões por ano com a pirataria chinesa de um ou outro tipo. Por necessidade, esses cálculos são aproximados, mas se chegassem a ser exatos significaria que a perda das companhias ocidentais por roubo de propriedade intelectual era muito maior que o fluxo total de investimento direto estrangeiro na China. Em 2004, por exemplo, o investimento estrangeiro chegou a US$ 66 bilhões.

As falsificações são trágicas, cômicas ou as duas coisas ao mesmo tempo. Tacos de golfe têm sido amplamente pirateados, mas com graus variados de sucesso. Um saco de tacos de aparência impressionante pode custar menos de um décimo de seu preço nos Estados Unidos ou na Europa, mas alguns quebram no meio de uma tacada, soltando a cabeça atrás da bola gramado abaixo. Outras falsificações são ainda mais perigosas. Chaleiras explodem, transformadores elétricos entram em curto-circuito, remédios não têm efeito, pastilhas de freio falham, bebidas alcoólicas envenenam aqueles que as ingerem, e leite em pó falsificado teve o efeito de matar vários bebês de fome.

Para muitas empresas estrangeiras, no entanto, o problema não são tanto as falsificações de baixa qualidade quanto a réplica fiel com a qualidade do original. Fora as motocicletas, a indústria de automóveis apresentou um evidente estudo de caso para esse tipo de abuso.
A Chery Automobile não existia quando a Volkswagen, a líder do mercado, lançou seu Jetta, um carro popular, no final dos anos 90. Mas 33 meses depois de começar do zero com uma nova companhia na cidade de Wuhu, nas margens do Rio Yang-Tsé-Kiang, a Chery tinha feito seu primeiro carro, um sedã de quatro portas chamado Chery, que apresentava uma semelhança mais do que casual com o Jetta, na época o carro mais vendido na China. Imediatamente se levantaram suspeitas, em parte porque o principal investidor da Chery, a Saic, era parceira numa joint venture com a Volkswagen, e em parte porque um dos principais executivos da Chery fabricava o Jetta na China para a Audi, subsidiária da Volkswagen. A empresa alemã deu início a uma investigação e descobriu suas peças originais dentro do Chery. Escreveram e falaram com executivos da Chery, que pertence ao governo municipal de Wuhu, e por fim a companhia chinesa concordou em não usar mais peças originais.
Meses depois de começar do zero sua fábrica, a chery fez um sedã igual ao jetta, da volks, carro mais vendido da China
Seja qual for a interação entre certo ou errado, o resultado comercial da pirataria é sempre o mesmo: rápida destruição de valor de um grande leque de produtos manufaturados. Isso não vale só para artigos estabelecidos, mas também para novas tecnologias; e a prova de uma incessante derrubada pode ser encontrada tanto em exemplos individuais como em preços agregados de itens manufaturados desde 1998.
Independentemente do crescimento acelerado na economia mais vasta, ou da inflação predominante, medida por índices amplos, como o Índice de Preços ao Consumidor, os preços médios de produtos manufaturados caíram ano a ano. Em alguns casos, o declínio foi significativo. Uma televisão de tela plana de 29 polegadas, que custava 6 mil renminbi em 1998, estava saindo por pouco menos de 2 mil renminbi no final de 2004. Telefones celulares de tela colorida eram um produto novo, da moda, em 2001, e tinham preço correspondente, em torno de 6,5 mil renminbi; no final de 2004, eles eram comercializados por menos de 2 mil renminbi .
Marcas domésticas de aparelhos de DVD, todos configurados para funcionar com DVDs falsificados, chegaram ao mercado em 1998 a 3 mil renminbi , mas custavam cerca de 500 renminbi no final de 2004. Caixas de configuração que permitem aos espectadores acesso à televisão por satélite começaram a ser vendidas por cerca de 2,3 mil renminbi em 2000, mas estavam saindo a mais ou menos 700 renminbi em fins de 2004. Cada um desses produtos representava uma nova tecnologia estrangeira que, uma vez introduzida na China, sofreu rápida destruição no valor, em parte pela pirataria.
O problema, no entanto, como Yin começava a descobrir no final dos anos 90, era que a pirataria tinha uma maneira de se virar contra aqueles que antes tinham prosperado com ela. Sem a existência de barreiras tecnológicas e com capital livremente disponível, apareciam cada vez mais fabricantes de motocicletas, cada um seguindo a trilha que Yin tinha estabelecido. Em 1998, havia mais de mil fábricas de motocicletas na China, produzindo cerca de 15 milhões de unidades por ano, 5 milhões a mais do que era vendido. Na medida em que as motocicletas não vendidas enchiam os depósitos, declarou-se uma feroz guerra de preços, até que qualquer margem de lucro foi completamente obliterada. Mas os grandes jogadores, ainda paralisados por um vasto mercado em potencial, recusaram-se a alterar suas estratégias. Liang Xueben, o gerente-geral da Jianshe-Yamaha, me disse que naquele ano ele tinha o compromisso de conservar a fatia de mercado. Apenas 3% dos chineses possuíam motocicletas, disse. Um dia o mercado iria decolar e haveria lucros espantosos. A Yamaha não podia se dar ao luxo de ceder terreno para concorrentes domésticos agora em surgimento.
Oito anos mais tarde, o esperado boom nas vendas ainda não se tinha materializado, e o problema do excesso de produção era mais agudo do que nunca. Yin estava desiludido. Quase todo o valor tinha sido arrancado da indústria, e ele começou a dizer, meio de brincadeira, que logo estaria começando a vender motocicletas a quilo, como porcos. "O preço de venda do nosso modelo mais barato é 25 renminbi por quilo. Isso é um pouco mais que o quilo do porco vivo", disse um de seus representantes, Yang Zhou, durante outra de minhas visitas à fábrica. Uma comparação mais pertinente, no entanto, pode ser com o custo do metal e de outros componentes que integram a fabricação de uma motocicleta. Com preços de venda em torno de 2,5 mil renminbi, uma motocicleta custa só um pouquinho mais que seu valor como sucata; os outros insumos, como engenharia, mão-de-obra, custos de desenvolvimento, marca, distribuição, a experiência e a visão dos executivos da empresa, são classificados como sem valor. "É claro que isso não é saudável. É uma concorrência maligna", diz Yang.


Prédio residencial em Xangai A rápida urbanização da população chinesa alimenta as duas pontas do mercado interno: fornece a mão-de-obra que as empresas necessitam e cria milhões de novos consumidores para casas, móveis, eletrodomésticos...
Não há lei de falência
Em uma economia de mercado normal, as empresas não podem continuar vendendo abaixo do custo durante anos. Os bancos começam a se preocupar com a capacidade que elas têm de pagar as dívidas e acabam por retirar os empréstimos. Mas a China não tem uma economia de mercado normal. Ela não tem uma lei de falência vigente, de modo que a insolvência das companhias é difícil. Além disso, os bancos estão nadando em liquidez; o povo chinês poupa uma média de 40% de sua renda, e o suprimento de dinheiro na economia é bem acima do dobro do produto interno bruto anual.
Isso significa que os bancos muitas vezes têm mais depósitos que tomadores de empréstimos, e portanto são menos vigilantes quanto a retirar empréstimos suspeitos. Fora isso, há outros interesses. Um banqueiro sênior de província do Banco Industrial e Comercial da China, o maior banco do país, me disse que a precipitação de uma falência com a retirada dos empréstimos de uma companhia insolvente era contra os interesses do banco. O efeito dominó seria palpável, já que os fornecedores da companhia também seriam afetados, disse ele. O desemprego aumentaria, provocando potencialmente uma queda no consumo e pondo em perigo a estabilidade social. "É muito melhor esperar a próxima virada no mercado que provocar um colapso no sistema inteiro", disse o banqueiro. A onipresença dessa atitude é revelada por um nível extremamente baixo de falências empresariais chinesas, segundo os padrões internacionais.
Essa peculiaridade leva a outra, moldada em parte pela sempre presente atração de vender para o mítico "bilhão". Sob condições de economia de mercado, quando uma companhia tem de enfrentar excesso de produção daquilo que fabrica, ela em geral vende suas ações. Mas, na China, isso só acontece raramente. Uma reação mais comum é continuar produzindo na mesma velocidade, ao mesmo tempo que se olha em torno em busca de outro setor industrial no qual diversificar. Em uma viagem ao delta do Rio Pérola, fui visitar o maior fabricante mundial de fornos de microondas, uma companhia chamada Galanz. De lá, fui um pouco além, até Midea, um dos maiores fabricantes mundiais de aparelhos de ar-condicionado.
As duas companhias eram exemplos clássicos de seu tipo. Cada uma começou como uma modesta oficina no início da década de 80, fabricando produtos que pareciam protótipos vindos da Revolução Industrial. No caso da Midea, foi um pequeno ventilador elétrico, cujas lâminas tinham sido moldadas a golpes de martelo sobre uma bancada de madeira pelo presidente da companhia (o objeto agora está em exposição numa caixa de vidro, no museu da empresa). Mas por ocasião de minha visita, em 2001, os dias de glória da liderança patriarcal tinham terminado, e as duas companhias haviam caído num lodaçal de excesso de produção. Suas margens de lucro afundavam rapidamente, e os executivos de cada uma delas reconheceram que a outra operava com prejuízos. Mas a reação a essa difícil situação me surpreendeu. A Galanz, a fabricante de fornos de microondas, resolveu expandir para aparelhos de ar-condicionado, e a Midea, a fabricante de aparelhos de ar-condicionado, resolveu entrar na fabricação de fornos de microondas. Não importava que a demanda nacional por aparelhos de ar-condicionado estivesse atrás da oferta em 10 milhões de unidades, e que os fornos de microondas também fossem produzidos em excesso.
Perguntei a Yu Yaochang, vice-presidente da Galanz, como os bancos estavam dispostos a apoiar uma diversificação desse tipo. "A única preocupação dos bancos é se a nossa companhia está crescendo e ficando mais forte. Se você expande a produção, está aumentando a escala e reduzindo o custo unitário. Isso é maior e mais forte. E, de qualquer modo, somos a maior companhia local. Se eles não emprestarem para nós, vão emprestar para quem?" Esse raciocínio ajuda a criar a característica mais visível da economia chinesa: a de que há, de quase todos os produtos manufaturados (cerca de 90%, no final de 2005), excesso crônico.
Desse modo, quando a margem de lucro da fábrica de motocicletas Lifan se comprimiu, a reação de Yin não foi recuar, mas atacar. Ele diversificou para fabricar ônibus, água mineral, solvente de tintas, vinho importado, jornais, jaquetas de plumas de pato e um bem-sucedido time de futebol chinês que trazia o nome da companhia. Ele andara lendo os livros de gerenciamento escritos por Jack Welch, então CEO da General Electric, cuja fotografia pode ser vista na capa de traduções piratas do livro, vendidas pela China inteira. A diversificação, disse ele, ajuda uma companhia a superar as quedas no ciclo dos negócios. Entretanto, ficou claro que, para manter vivo seu núcleo de negócios de motocicletas, ele teria de encontrar uma nova fonte de renda e fazer as vendas crescerem. A resposta era evidente: exportação. Qualquer companhia que pudesse sobreviver no caldeirão da competição chinesa certamente teria uma chance no estrangeiro.
Seu campo de batalha escolhido foi o Vietnã, onde a Lifan deu de cara com a Honda. A fatia de mercado da companhia japonesa era em torno de 70% no território vietnamita quando a Lifan fez suas primeiras incursões, mas Yin tinha a óbvia vantagem do preço. Seu subterfúgio inicial era oferecer motocicletas que pareciam praticamente idênticas às da Honda mas custavam um terço do preço. Esta se provou uma atração poderosa, e dentro de três anos a Lifan tinha deixado sua rival para trás.
As companhias japonesas são conhecidas por financiar suas investidas nos mercados de exportação cobrando mais caro por seus produtos em casa do que no estrangeiro. As corporações chinesas fazem exatamente o contrário. Muitas delas, inclusive a Lifan, exportam como um meio de se manter bem em casa. Yang Zhou, representante de Yin, diz que as margens de lucro sobre as motos vendidas na África, no Irã e na América Latina podem chegar a 10%, em alguns casos, enquanto as margens de lucro na China são extremamente pequenas ou negativas. Na Nigéria, por exemplo, a companhia consegue vender por 6 mil renminbi uma moto que sai pela metade desse preço na China.
Em uma economia de mercado normal, empresas não podem vender abaixo do custoe por anos. Na China, elas podem
Minha viagem de Chongqing acabou em uma estação terminal da Revolução Industrial da China, um lugar onde acabam centenas de milhares de produtos feitos em fábricas como a de Yin. A cidade chamava-se Yiwu. Apenas 15 anos atrás, essa cidadezinha no meio da província de Zhejiang, no litoral leste da China, se distinguira um pouco além da estranheza de seu nome. Yiwu significa "corvo leal", mas quando você pergunta ao pessoal do lugar por que, recebe uma gama de respostas diferentes. De qualquer modo, ninguém parece dar grande importância. Há muita coisa acontecendo. Em menos de duas décadas, ela se transformou de um sonolento lugar atrasado em um dos lugares mais movimentados do país. Embora continue pouco conhecida fora da China, Yiwu passou a ser o maior mercado atacadista do mundo.
A escala do lugar é estonteante. Cerca de 34 mil estandes estão, um seguido do outro, em um vasto hall, e vendem aproximadamente 320 mil tipos diferentes de produtos. Quase todas as categorias de itens manufaturados feitos nas fábricas dos deltas dos rios Pérola e Yang-Tsé-Kiang estão à venda, em hangares que cobrem uma área de 1,5 mil hectares. Amigos chineses insistiram que eu visitasse Yiwu para me maravilhar com os preços. Eles me disseram que se pegássemos o preço das melhores pechinchas no mercado mais barato de Pequim e o dividíssemos pela metade, chegaríamos perto do custo de compra das mesmas coisas em Yiwu.
Lá, caminhei algumas centenas de metros até chegar a um shopping que vendia acessórios de moda. A primeira loja anunciava bolsas de couro feitas na Itália pela famosa marca Gucci. Custavam US$ 11 cada uma, mas, disse o vendedor, sempre se pode barganhar um pouco. Perto, havia três lojas em fila. Uma se chamava YSL, outra LYS e a terceira, SYL. Todas tinham na parede uma grande fotografia de um jovial Yves Saint-Laurent com sua marca registrada, os óculos de aros grossos.
Em outro canto, havia estandes com cópias da Lacoste, mais uma vez, todos próximos uns dos outros. Uma das marcas se chamava New Crocodile, outra, Crocodile of the Yangtze, uma terceira, Crocokids, e a última, Croc Croc. Entrei em uma delas e perguntei à vendedora se os produtos verdadeiros da marca Lacoste eram vendidos em sua loja ou na França. "O crocodilo francês e o crocodilo chinês são a mesma marca. Houve uma fusão", disse-me. Depois fez um gesto desdenhoso para as lojas rivais em torno. "São todas falsificações, é fácil perceber."
Trecho da muralha da China Erguida 4 mil anos antes de Cristo para deter os bárbaros, hoje a muralha delimita um país cuja influência econômica transbordou de suas fronteiras e ameaça transformar o resto do mundo, para o bem e para o mal
Em Yiwu, dava para vislumbrar a fonte do fenômeno das lojas de descontos que varre o mundo desenvolvido. Meia hora de caminhada pelos cavernosos salões de exposição era suficiente para destruir qualquer mistério de como Wal-Mart, Target, Home Depot, Tesco, Metro, Carrefour, Lowe's, Best Buy, Royal Ahold e diversos outros varejistas de descontos conseguem oferecer artigos tão baratos. Na verdade, comecei a ficar impressionado, não com a capacidade que tinham de dar descontos, mas com a habilidade em se sair bem ao cobrar pesados aumentos sem reação dos consumidores. Todas as grandes lojas de descontos recebem sua mercadoria da China, e todas devem sua alta classificação na categoria de 500 maiores corporações do mundo em parte pelos gordos lucros que ganham com essa aquisição.
Esperava-se que a aquisição total de artigos no atacado por varejistas estrangeiros alcançasse US$ 60 milhões em 2006, de acordo com estimativas oficiais chinesas. Se fizermos a suposição altamente conservadora de que esses artigos são vendidos no mundo desenvolvido pelo dobro do custo de aquisição, então parece que pelo menos a estonteante quantia de US$ 120 bilhões em mercadorias, obtidos nas lojas de desconto européias e norte-americanas, vem da China.
Yiwu é o ponto para o qual convergem as energias coletadas com a transformação industrial da China. A presença projetada pela China mundo afora origina-se primariamente nas forças simbolizadas por Yiwu. Isso acontece porque, ao longo da história, os grandes desvios no equilíbrio global de poder e na hierarquia das nações têm sido acompanhados ou, muitas vezes, precedidos por um conjunto de sinais de novos preços.

Várias das condições de ascensão da China atual espelham as dos Estados Unidos na segunda metade do século 19. A transformação de Chongqing se assemelha à de uma Chicago jovial, e a construção da infra-estrutura chinesa é uma réplica da dos Estados Unidos, tanto em conceito como até em alguns detalhes. Mas também o movimento dos filhos e filhas de agricultores para as fábricas ao longo do litoral ecoa a migração em massa dos jovens da Europa para o Novo Mundo, há cerca de 150 anos. Novas tecnologias de comunicação, nos Estados Unidos de século e meio atrás, eram as ferrovias - na China de hoje, são a internet e a digitalização. Os fluxos internacionais de capital e experiência, da Grã-Bretanha para os EUA, no século 19, e, na era moderna, das nações industrializadas para a China, lubrificam o processo de mudança.

Mudanças na hierarquia das nações são antecipadas na história por alterações de preços industriais
Naquela época como hoje, as mudanças nos preços eram precursoras das transformações econômicas, políticas e sociais que estavam por vir. O período de 1873 a 1900 é conhecido como a era da "explosão deflacionária", porque os preços dos itens agrícolas e manufaturados caíram em praticamente todos os Estados Unidos. A abertura das pradarias à agricultura fez o preço dos grãos despencar em todo o mundo desenvolvido. Mudança semelhante atingiu a indústria. Andrew Carnegie, o barão industrial dos EUA que nasceu na Escócia, levou uma nova tecnologia para o aço, chamada conversor Bessemer, da Grã-Bretanha para os Estados Unidos, assim como Shen Wenron transportou a usina da Phoenix da Alemanha para a China.
De 1872 até 1898, os preços do aço Bessemer caíram 80% nos Estados Unidos, e Carnegie comentou profeticamente: "A nação que fizer o aço mais barato terá outras nações a seus pés". Realmente, a indústria britânica teve dificuldades em se ajustar aos inexoráveis ciclos de deflação dos produtos manufaturados, e muitas companhias faliram. .
No entanto, o padrão de vida melhorou para a maior parte do povo britânico por causa do nítido aumento no número de artigos importados baratos.Um século mais tarde, é a China que exporta a deflação em produtos manufaturados, e são os norte-americanos e os europeus que cada vez mais vivem com a ajuda de uma cornucópia de produtos made in China. Isso parece constituir, inequivocamente, o sinal de um começo de mudança na distribuição geopolítica do poder.

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